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maio 4, 2024
Política

Gabriela de Matos fala da conexão entre arquitetura, cultura e política

A arquiteta e urbanista Gabriela de Matos, Conselheira Superior do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) e premiada com o Leão de Ouro da Bienal de Arquitetura de Veneza de 2023, foi uma das participantes de destaque na IV Conferência Nacional de Cultura, que termina nesta sexta-feira, 8 de março, em Brasília, sob o tema “Direito à Cultura e Democracia”.

Integrante da mesa de abertura da setorial de Arquitetura e Urbanismo, defendeu a valorização da arquitetura e dos saberes populares e ancestrais como elementos fundamentais da identidade brasileira.

Nesta entrevista, Gabriela aborda a falta de reconhecimento, no Brasil, da arquitetura como expressão cultural; fala da criação de um instituto de pesquisa sobre arquitetura afro-brasileira e das contribuições dos arquitetos afrodescendentes para a preservação dos saberes populares e ancestrais; destaca a invisibilidade das arquitetas negras no mercado nacional; e defende a igualdade de oportunidades e o reconhecimento para todas as vozes na profissão.

A arquiteta também compartilha suas reflexões sobre a repercussão da premiação em Veneza, onde recebeu o Leão de Ouro de Melhor Participação Nacional em 2023, na 18ª Bienal de Arquitetura, pelo Pavilhão do Brasil, uma obra em colaboração curatorial com o arquiteto Paulo Tavares.

Considerando sua experiência com o projeto Arquitetas Negras e a fundação do Instituto de Fomento à Arquitetura Afro-brasileira, como você vê o papel da arquitetura, pensada como expressão cultural e linguagem, especialmente em um contexto onde a diversidade e a inclusão são urgentes e essenciais?

Gabriela de Matos: O projeto Arquitetas Negras surgiu não apenas pela necessidade de ter dados e mapeamento, mas também pela compreensão de que, como diz Lélia Gonzalez, sem dados não podemos abordar as questões com seriedade nem criar políticas públicas. Portanto, a única coisa que pensei que poderia fazer sozinha no projeto Arquitetas Negras era o mapeamento, já que ninguém poderia me impedir de criar um formulário e disponibilizá-lo para as pessoas responderem. A atividade acabou fomentando outra situação, já que as pessoas poderiam escrever seus relatos ali. Passei noites lendo esses relatos e refletindo sobre as melhores formas de lidar com cada situação. Isso foi em 2018, quando já tinha experiência em projetos de exposições de arte e estava envolvida nessa dimensão artística. Acredito, e continuo acreditando, que a arte é uma excelente forma de comunicar questões sérias.

Então, após realizar esse mapeamento, comecei a refletir sobre as conexões que poderiam ser estabelecidas com outras arquitetas negras. A partir dessas conexões, surgiram novas ideias e ações. Essas conexões se interligam porque o Arquitetas Negras é uma rede vasta, que não se resume a mim. O que está sob minha responsabilidade é o projeto Arquitetas Negras, pois quando ele começou, não tinha a estrutura de um instituto, era uma iniciativa. Esse projeto acabou orientando meu mestrado, onde percebi que não poderia abordar apenas a invisibilidade das mulheres negras na arquitetura sem discutir a invisibilidade da arquitetura afro-brasileira no contexto arquitetônico nacional. Nós, arquitetas negras, fazemos parte desse processo de invisibilização e violência, mas não somos todo o cenário. Essa invisibilidade remonta aos primórdios da arquitetura negra no Brasil, que foi construída a partir da diáspora e do conhecimento trazido por ela. Portanto, se no Brasil estamos envolvidos na arquitetura há mais de 500 anos, na África essa tradição já existia há muito mais tempo. A história não começa apenas aqui no Brasil.

Que iniciativas ou estratégias vocês têm em mente para as questões relacionadas ao ambiente construído, como as mudanças climáticas, a desigualdade social e a invisibilidade da arquitetura afro-brasileira no país?

Gabriela de Matos: No Instituto de Fomento à Arquitetura Afro-brasileira, nosso objetivo é criar ações que abrangem desde residências mais práticas até residências mais conceituais e de ideias. Isso é especialmente importante porque a arquitetura afro-brasileira tem ainda menos oportunidades de se manifestar nesse contexto. Depois de cinco anos trabalhando no projeto Arquitetas Negras, conversando e entrevistando profissionais da área e sendo uma arquiteta negra no mercado, percebo que muitas vezes precisamos esperar por um cliente com uma mente mais aberta para considerar outras propostas. A simples presença de um arquiteto negro não garante que ele produzirá uma arquitetura afro-brasileira nos moldes modificados e reinventados pelos terreiros, quilombos e outras influências culturais do Brasil. Então, nosso objetivo é criar condições para que essa arquitetura afro-brasileira exista, seja coesa e tenha contornos. Afinal, só podemos criticar se tivermos algo para criticar. Portanto, planejamos produzir, escrever, criticar, teorizar e contribuir ativamente para o desenvolvimento e reconhecimento dessa expressão arquitetônica.

Como você analisa o impacto cultural e político da participação do Brasil na Bienal de Veneza?

Gabriela de Matos: Quando se trata da Bienal de Veneza, há uma glamourização associada à aura do território europeu. No entanto, existe uma noção da importância dos debates que surgem com os trabalhos apresentados lá. Não sei se todos têm essa compreensão da magnitude desses debates, ou se a maioria das pessoas fica muito focada na glamourização do evento e não presta muita atenção nisso. Essa ênfase na glamourização pode ser frustrante, especialmente quando você está apresentando uma contribuição séria, fundamentada em questões profundas, e não nessa superficialidade. As pessoas têm dificuldade em entender, o que faz você sentir como se estivesse constantemente em um embate para provar a importância do que está sendo discutido. O modo como as coisas são conduzidas precisa seguir um determinado padrão, não há margem para mudanças.

Ficamos muito felizes com a presença da ministra da cultura Margareth Menezes na Bienal de Veneza. Afinal, era um pavilhão majoritariamente feito por mulheres negras: curadores, artesãs, o estagiário que era um homem negro, mas o restante eram todas mulheres, inclusive as duas cineastas, predominantemente mulheres negras. O fato de a ministra Margareth ter comparecido coroou a coisa de uma forma perfeita, primeiro porque ela é incrível. Ela tem uma energia incrível. Ela fez uma abertura incrível do pavilhão com um discurso muito bom. Quando Paulo Tavares e eu fizemos o projeto, foi antes da eleição do atual governo, então fizemos num contexto do período de [Jair] Bolsonaro. Escrevemos e reescrevemos esse projeto, sabendo que ele passaria pela Secretaria Especial de Cultura.

A retomada do Ministério da Cultura, logo quando começamos a produzir, ocorreu em janeiro do ano passado, em 2023, e posteriormente a abertura feita pela ministra Margareth. Foi uma experiência maravilhosa. Além disso, foi incrível observar a reação do público. Foi realmente gratificante. Após vermos tudo isso, concluímos que todo o esforço empregado no processo para trazer essa exposição da forma como foi, valeu a pena.

Como você percebe o reconhecimento do prêmio na Bienal?

Gabriela de Matos: O pós-prêmio foi interessante. Houve toda aquela euforia em torno do prêmio, toda aquela movimentação. Depois que deixei Veneza, tinha alguns outros eventos em outros países já agendados antes da premiação, o que foi bastante interessante, pois me proporcionou um contexto da importância do prêmio.

Ganhar o Leão de Ouro não estava nos meus planos. Durante a cerimônia, lembro-me de dizer para o Paulo: “Acredito que temos chances de ganhar isso.” Mas ele não compartilhava da mesma perspectiva. “Gabi, sem chance, sem chance” foi o que Paulo me respondeu durante a premiação. Estávamos completamente desacreditados. Entretanto, ao participar de outros eventos subsequentes, comecei a compreender melhor a importância desse reconhecimento internacional.

Foi uma experiência muito enriquecedora para mim [estender a estadia], pois se eu tivesse concluído meu trabalho em Veneza e voltado imediatamente para o Brasil, onde a repercussão do evento foi limitada, talvez eu não compreendesse plenamente a importância desse prêmio. Eu comecei a notar o impacto quando os locais que eu visitava começaram a encher, as pessoas ficaram entusiasmadas e interessadas no que estava acontecendo. Reuniões foram agendadas em várias cidades, em universidades e em outros locais. Consequentemente, minha agenda, que originalmente consistia em palestras pontuais, se expandiu consideravelmente. Após minha volta, no ano passado, após receber o prêmio, viajei para oito países para dar palestras. E este ano já tenho outros compromissos marcados.

Como você vê o papel do poder público, da mídia e dos veículos de comunicação na promoção e valorização de iniciativas culturais e políticas como a sua exposição na Bienal de Veneza?

Gabriela de Matos: Hoje, quase um ano depois, percebo como nosso prêmio foi subestimado aqui no Brasil. Acho muito chocante, pois temos veículos de comunicação sérios e comprometidos, interessados no debate sobre a cultura arquitetônica não apenas nacionalmente, mas também internacionalmente, e que compreendem a importância desse diálogo. Para um prêmio como o nosso, conquistado na América do Sul, em um contexto europeu, é necessário um momento de reflexão e discussão. Não é algo que possamos alcançar facilmente; ocorreu porque apresentamos um debate quando as pessoas estavam receptivas e interessadas nele. Portanto, acredito que aproveitamos nossa oportunidade para apresentar essa curadoria não apenas como uma expressão artística, mas também como uma posição política. Ao analisar os outros pavilhões presentes na Bienal de Veneza e os pavilhões brasileiros anteriores, percebemos isso. Mesmo quando alguém escolhe ser omisso em relação ao tempo que representa, essa escolha também é política.

Se alguém opta por não abordar nenhum aspecto daquele momento específico, ainda assim está tomando uma posição política. Eu não acredito na neutralidade. Não existe neutralidade. Sempre estamos nos posicionando, mesmo quando não dizemos nada. Nós apresentamos esse trabalho exatamente nesse contexto europeu. O que me entristeceu foi perceber que, no Brasil, poderíamos ter agido como um “bom território colonizado que somos”, e pelo menos ter considerado: “Bem, então talvez devêssemos analisar essa pesquisa do Paulo e da Gabriela, afinal, eles ganharam um Leão de Ouro! Devemos dar atenção a isso.” Mas não! A dimensão colonial na produção de conhecimento e na mídia brasileira está tão enraizada, tão profundamente arraigada, que preferiu-se ignorar completamente.

E há também a questão de que estamos lutando duramente para realizar a exposição aqui no Brasil. Acreditamos que este é o lugar mais importante para sediá-la.

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